Memória das Cidades

A vida cultural curitibana dos anos 1950 vista por René Dotti

 
Jurista e professor renomado no Brasil, René Ariel Dotti também foi secretário da Cultura do Paraná e crítico de literatura e teatro em jornais do estado. Seus livros lhe renderam a cadeira de número 3 da Academia Paranaense de Letras.
Entrevista gravada em agosto de 1998
 
 
José Wille – Como era a vida intelectual de Curitiba na década de 1950?
René Dotti – Era muito rica, porque Curitiba e o Paraná também não tinham a televisão, como São Paulo e Rio de Janeiro. Então, os meios de comunicação se limitavam evidentemente ao rádio e ao jornal. Isto fazia com que os movimentos artísticos, políticos e culturais, de um modo geral, tivessem uma aglutinação em determinados pontos da cidade. Refiro-me ao fenômeno de Curitiba, à Biblioteca Pública do Paraná, à Cocaco, ao Teatro Guaíra, construído e inaugurado em 1954. E desses pontos havia ressonâncias muito grandes captadas pelo jornal e pelo rádio, e que formavam um eco extraordinário do ponto de vista de estímulo para a produção artística e cultural. E até mesmo ao movimento de resistência. Foi famosa, durante aquele período, a rebelião do Salão Paranaense, quando Loio-Pérsio, Guido Viaro e outros pintores e artistas plásticos se rebelaram contra os critérios adotados pela secretaria de estado da época, que dava prioridade a um estilo de produção artística, principalmente na pintura e na escultura, em oposição ao que vinha de mais recente dos movimentos artísticos europeus, ao abstracionismo e outras tendências mais libertárias quanto à forma. Então, era um movimento intenso, estimulado também pela fundação do “Diário do Paraná”, nos anos 50, que era uma espécie de ponte dos Associados. Recebia, inclusive, do “Diário de São Paulo”, os Associados de São Paulo, um farto material para repercutir em nosso estado. Fotografias, clichês, ideias, diagramação visual com o “Benjamin” – o famoso “Benjamin” foi uma conquista do “Diário do Paraná”, em função do know-how dos Associados.
José Wille – Foi o veículo mais importante do estado do Paraná nessa época e o senhor foi também colaborador do “Diário do Paraná”.
René Dotti – Ao lado do “Estado do Paraná”, de Aristides Mery, que tinha uma projeção muito grande. Eu fui colaborador de 1955 até 1961. Porque, em 1955, deixei a atividade de teatro, à qual estive ligado durante um tempo, e passei a exercer a função de crítico literário e crítico de teatro. Os jornais em Curitiba mantinham diariamente uma coluna sobre teatro: a “Gazeta do Povo”, o “Estado do Paraná” e o “Diário do Paraná” tinham esta coluna. Porque o movimento era tão grande de teatro, dança e outras formas de cultura estética que permitiam 3 colunas diárias nos jornais. Então, eu passei a prestar uma colaboração ao “Diário do Paraná” e também fazia crônicas literárias. Em 1955, foi criada a página “Letras & Artes”, coordenada pelo Sylvio Back e que contava, a partir de então, com Luiz Geraldo Mazza, Walmor Marcelino, Roberto Muggiati e outros escritores. Muitos estão fora e outros ainda estão na imprensa do Paraná.
José Wille – Na sua infância e adolescência, um ponto curioso é que o senhor era gago. O teatro ajudou a superar este problema? Foi uma das razões de sua dedicação ao teatro no Colégio Estadual do Paraná, no comecinho da década de 50?
René Dotti – Em alguns momentos, eu tinha dificuldade no pronunciamento de certas palavras e era, indiscutivelmente, uma gagueira. Não permanente, mas cíclica ou episódica. E tomei conhecimento de que aqui em Curitiba, no Colégio Estadual, estava um professor do Serviço Nacional de Teatro que era também professor da arte de dicção – naquela época, não havia fonoaudiólogos. Então, passei a ter umas aulas de dicção com ele e a superar, portanto, aquele problema, que durante a minha infância e adolescência me preocupou sinceramente.
José Wille – E o senhor conseguiu superá-lo com o tempo?
René Dotti – Consegui superá-lo muito bem, muito bem.
José Wille – O grupo do qual o senhor participou por alguns anos surgiu no Colégio Estadual do Paraná e era liderado por Ary Fontoura, que depois fez carreira como artista nacional.
René Dotti – Dentro desta preocupação de sair um pouco do bairro do Ahú de Baixo e de aprimorar a técnica de dicção de linguagem, nós iniciamos um período no Colégio Estadual do Paraná, que tinha o seu próprio grupo de teatro. O professor Ribeiro estimulava muito o grupo de teatro de alunos, mas formamos outro grupo, liderado por Ary Fontoura, que, mais tarde, veio a se constituir na Sociedade Paranaense de Teatro. Lembro que, quando nós saíamos – eu, Ary, Sinval Martins e outros colegas – pelas ruas da cidade, o Ary olhava as garagens e dizia “aqui cabem trinta e poucos lugares.”. Ele sempre concebia os espaços físicos como espaços de auditórios de teatro. Era uma vocação inata, profundamente estimulante e também contagiante, pois nós vivíamos uma época que sofria uma influência muito grande do Teatro Brasileiro de Comédia, muito importante, um marco histórico na cenografia e no movimento de teatro nacional, com atores italianos. O tempo das grandes produções do Teatro Brasileiro de Comédia, que saiu depois para a produção de cinema, com o estúdio da Vera Cruz, como a história veio a registrar. Então, havia no Colégio Estadual do Paraná já uma semente! Eram as vertentes de um movimento de teatro que se caracterizou por sua dedicação a textos não só nacionais como também estrangeiros traduzidos. E que nós marcamos, penso eu, um período muito significativo, inclusive inaugurando como grupo local o Pequeno Auditório do Teatro Guaíra. 
José Wille – Professor René Dotti, no teatro, o senhor fez praticamente tudo nestes anos na década de 50?
René Dotti – Trabalhei como ator. Ganhei o prêmio Paschoal Carlos Magno como ator, em uma peça de teatro de Oscar Wilde, “A importância de chamar-se Ernesto”. Fiz cenários também e ganhei prêmio de cenografia. E também ganhei prêmio de direção de teatro na peça de Franciosi. Na contabilidade geral, participei de umas 15 produções de teatro durante o período de 1951 até 1955.
José Wille – Mas o senhor não teve o entusiasmo de acompanhar seus colegas para o radioteatro ou para a televisão, para onde muita gente foi?
René Dotti – Em 1955, eu tive que fazer uma opção de minha vida. Ou a carreira de teatro ou o curso de Direito. Teatro não era para mim uma carreira, era um envolvimento intelectual, envolvimento afetivo, mas não um envolvimento do ponto de vista de formação de uma carreira. Eu tive inclusive problemas de frequência em disciplinas de Direito, porque estava fazendo o cenário ou preparando as peças. Então, fiz minha opção. E o Ary me disse, naquela ocasião, que ele tinha feito a opção pelo teatro e que iria realmente começar em uma grande cidade, o Rio de Janeiro. Então, ali nos separamos e me dediquei integralmente à faculdade de Direito. E, logo depois, fui ao jornal “Diário do Paraná”. Passei a acompanhar, então, o movimento artístico, mas na condição de colunista de teatro.

 

 

 

 

 

 

 

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