O “AI-5” acabou com as liberdades democráticas em 1968
O “AI-5” – Ato Institucional nº 5 – foi anunciado em 1968, quando o general Costa e Silva era presidente da República. Por dez anos o Brasil, que já vivia em uma ditadura desde 1964, entrou em regime de exceção ainda mais fechado. Foi uma reação do governo aos protestos que tomavam conta das ruas, pedindo liberdade.
De 1968 a 1978 houve um período de suspensão das garantias constitucionais, prisões, torturas e mortes. E ainda os governadores, prefeitos e até senadores passaram a ser escolhidos pelo próprio governo. Leia abaixo o depoimento do então ministro, Ivo Arzua, que também assinou o “AI-5”. Ele era ministro da agricultura, nesta época.
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Ivo Arzua era ministro da agricultura em 1967.
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José Wille – Em 1966, o senhor foi convidado a assumir o Ministério da Agricultura pelo presidente?
Ivo Arzua – Eu acho que foi o presidente, porque a notícia das obras de planejamento de Curitiba e das obras que estávamos iniciando já tinha corrido o Brasil. Já tinha certo prestígio em relação a este planejamento. Quando Costa e Silva veio a Curitiba a convite de amigos e classes políticas e empresariais, trouxe o Andreazza, que depois foi ministro dos Transportes. Ele percorreu a cidade e ouviu muitas referências boas a meu respeito. Fui convidado, então, para ter uma conversa com o presidente. E aí ele me convidou para o Ministério da Agricultura. Eu lhe disse “Eu não sou fazendeiro, não tenho terras, não sou agrônomo”. E ele respondeu “Não, mas você é um bom planejador e um bom executor”. Ainda assim, achei que havia gente melhor para a área. Na terceira vez em que ele repetiu o convite, não pude recusar, porque ele disse que, se eu não aceitasse, o Paraná não teria ministro. Então, fui para o Ministério da Agricultura em 15 de março de 1967. Mas, cônscio das minhas falhas na área de agricultura, fiquei mais ou menos uns 15 dias aqui na Escola de Agronomia e Veterinária, fazendo uma espécie de cursilho de agricultura. O diretor era meu amigo e conseguiu com os professores a gentileza de que eu ficasse praticamente 24 horas por dia debatendo com eles e ouvindo aulas sobre agricultura, Depois disso, percorri as regiões principais do Paraná, de São Paulo, do Rio Grande do Sul e outras do Brasil, tendo contato direto com os agricultores. Eles reuniam o pessoal em sindicatos de lavradores e cooperativas, e eu ia debater com eles. Quando assumi o cargo de ministro, já levava um esboço de planejamento para a agricultura.
José Wille – Um ponto polêmico que marca a sua carreira como ministro: nas reuniões do Conselho de Segurança Nacional, o senhor participou do momento em que se decidiu pelo AI-5, que acabou com as liberdades democráticas e permitiu uma repressão ainda maior.
Ivo Arzua – Eu disse, outro dia, num programa de televisão, que as pessoas têm de ser julgadas dentro de sua época. Por exemplo, condena-se muito Roosevelt e Churchill por terem feito aquela aliança com Stalin, o sanguinário ditador russo. Mas eles não tiveram saída. Ou era Hitler ou era Stalin. Para vencer um, eles tinham que se aliar a outro. E preferiram o Stalin. Então, naquela época, não tinha outra solução. Foi o caso do AI-5. Havia o que eles chamavam de guerrilha urbana, havia relatórios secretos dos órgãos de segurança. Outro dia, houve uma entrevista sobre Lamarca, com documentos mostrando que realmente a intenção dos comunistas era tomar o poder pela força. Então, o governo tinha que ter muita força para evitar o domínio comunista. E aí saiu o AI-5, na reunião do ministério. Eu publiquei, em 1978, no jornal “Correio de Notícias”, o artigo “AI-5 –Questão de Consciência”, mostrando qual foi a minha participação. O meu voto foi por escrito e eu dizia que só admitia o AI-5 se fosse de curto prazo, como transição para vencer a guerrilha urbana que estava se manifestando e para preparar uma Constituinte para a nova República, com bases claras e essencialmente democráticas.
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José Wille – Essas circunstâncias de estar ali e ter assinado – como o senhor sentiu isso a seguir?
Ivo Arzua – Acho que o AI-5 foi mal-interpretado, porque acho que o único grande pecado dos governos militares foi esse: de ter assumido, por exemplo, essa parte de condenação política, de julgamento político. Isso deveria ser entregue ao Judiciário. Era a minha opinião particular, como civil participante do governo, que ofensas às leis e a preceitos constitucionais fossem entregues ao Judiciário. Mas prevaleceu o outro ponto de vista e eu fui contrariado na minha posição.
José Wille – O senhor viveu dentro do governo militar de Costa e Silva, participando das reuniões até do Conselho de Segurança Nacional. Havia até um pouco de paranoia?
Ivo Arzua – Havia, eu acho. Eu admiro muito a classe militar do Brasil, pois, no geral, são pessoas honestas, patriotas, capazes, amam o Brasil até mais que nós civis. Mas, num certo momento desses governos militares, interesses políticos tiveram predominância, usando os militares como fachada. E isto influiu muito, pois os militares são ingênuos para a política, não têm jogo de cintura e, então, se tornaram presas políticas neste jogo.
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José Wille – Quando terminou o período de Costa e Silva, o senhor acabou saindo junto. Havia um problema de relacionamento com o novo presidente, Emílio Garrastazu Médici?
Ivo Arzua – O presidente Costa e Silva foi impedido por motivos de saúde e eu tenho o hábito, na minha vida, de sempre sair com o meu chefe, por consideração. E quanto ao Médici, em que pese ser também um grande militar, um grande homem público do Brasil, eu tive um desentendimento com ele, exatamente em relação à conduta do SNI. Este foi em um debate que tive com ele, juntamente com o presidente Costa e Silva, que achou que eu tinha razão, ficando do meu lado.
José Wille – Isso foi ainda durante o governo do presidente Costa e Silva.
Ivo Arzua – O motivo principal foi a minha lealdade e admiração ao presidente Costa e Silva. Fui o único ministro que apresentou um pedido de demissão por escrito. Como a Junta Militar não quis aceitá-lo, entreguei ao chefe da Casa Civil o meu pedido de renúncia de ministro da Agricultura.
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José Wille – Essa situação lhe custou alguma coisa na sequência, por parte do governo militar?
Ivo Arzua – Não, eu fiquei totalmente marginalizado, porque é uma atitude que não era usual. No geral, o usual é a subserviência, a adesão, a continuidade. E nunca houve isso comigo – para você ter ideia: para o presidente Costa e Silva, pedi demissão cinco vezes, sendo que três delas por escrito. Quando eu não concordava com uma decisão que o governo ia tomar, apresentava a demissão, para não prejudicar o governo – “O senhor me demita e, quando aparecer nos jornais a minha demissão, venho agradecer a Vossa Excelência. Saio mais seu amigo do que quando entrei”.
José Wille – Surgiram suspeitas, na época, do que teria acontecido quando Costa e Silva ficou doente. Ele era tido como mais moderado, não um militar linha-dura. Como o senhor interpreta este caso?
Ivo Arzua – Aconteceu uma coisa muito interessante – histórias que a História não conta. Eu estava me restabelecendo de uma pleuresia, porque, no ministério, me sacrifiquei muito. Saía do ministério à meia-noite ou à uma hora e, às cinco e meia, já estava lá de novo – como também aqui, nas obras do Centro Cívico e na prefeitura. Eu sempre fui assim, sempre me dediquei de corpo e alma. Mas sabia que isso iria estourar em algum lugar do meu corpo. E estourou no pulmão, com a pleuresia. Fiquei doente e, quando houve um congresso agropecuário, que coincidiu com as comemorações do Dia do Soldado, fui a Brasília, contra ordens médicas, e abri o evento. E voltou a febre. O médico do presidente da República me deu ordens para que me recolhesse ao leito e eu não fui à solenidade do Dia do Soldado – uma recepção no Ministério do Exército, em que os militares e o presidente da República receberiam a sociedade civil, ministros de Estado, diplomatas… Enfim, uma grande festa, a qual não pude ir. No dia seguinte, um amigo meu que esteve lá me contou que o Costa e Silva tinha preparado aquela proposta que eu tinha feito de uma nova Constituição e de uma nova República. Só que eles não concordaram com a Constituinte. E o Pedro Aleixo, que é um grande jurista, um grande homem, vice-presidente da República, coordenou esta nova Constituição, de espírito inteiramente democrático, derrogando o AI-5. Acabava com o AI-5 e reabria o Congresso Nacional, na plenitude dos seus poderes. O presidente aprovou e estava disposto a reabrir o Congresso e promulgar a nova Constituição, no dia 7 de setembro de 1969.
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José Wille – Essa era a intenção de Costa e Silva?
Ivo Arzua – Essa era a intenção dele. E, nesta reunião, me contaram que as áreas militares apresentaram uns documentos a ele, dizendo que não concordavam e que não era hora ainda do Brasil retornar à democracia. Isto lhe deu um grande trauma psíquico. No dia seguinte, começou o derrame que o levou à morte. Porque não deixaram que ele realizasse o seu sonho e a promessa feita a nós do ministério. O voto dele foi mais ou menos dentro das linhas gerais que eu tinha dado: o AI-5 transitório, apenas para vencer a guerra revolucionária e reabrir o Congresso com a plenitude de seus poderes, em uma nova República, com características democráticas. Não o deixaram fazer isso. Então, ele pagou com a sua saúde e com a vida.
José Wille – Depois desse período que passou em Brasília, participando do governo Costa e Silva, ao retornar a Curitiba, houve momentos em que o senhor teve que se posicionar politicamente. Em um deles, foi solidário ao comandante de Ponta Grossa, que fez um discurso pelas liberdades democráticas e acabou sendo punido…
Ivo Arzua – Exatamente.
José Wille – O senhor participou também da Frente de Redemocratização, com Ulysses Guimarães?
Ivo Arzua – Exatamente. Sobre os meus princípios democráticos, acho que não pode haver dúvidas. Durante o regime militar, fizemos o Plano de Urbanismo de Curitiba de forma inteiramente democrática, discutindo com toda a população. Em 1974, quando notei que a Aliança Renovadora Nacional estava contrariando aqueles princípios iniciais de redemocratização do Brasil e a tendência era o prolongamento do período de exceção, eu me retirei da Arena, cujo presidente era Accioly Filho. Quando o coronel Tarcísio, comandante do 20º BIB em Ponta Grossa, foi preso por ter feito um pronunciamento pela redemocratização, fui em defesa dele. Ele foi julgado pela Justiça Militar e eu me apresentei voluntariamente para defendê-lo. O advogado dele era o grande René Dotti.
E, depois, fui convidado pelo Ulysses Guimarães e pelo Tancredo Neves, dos quais guardo grandes lembranças, a participar da Frente Nacional de Redemocratização. Participei dela e fizemos um grande comício em Curitiba, a portas fechadas, no grande auditório do Colégio Estadual do Paraná, pois foi negada pelo governador do estado da época a licença para um comício público. Lá estava eu, o Teotônio Vilela, o Ulysses Guimarães, o Tancredo Neves e outros próceres democráticos, mas muito reduzidos. Então, dentro do governo militar, a minha posição sempre foi essa: pela democracia, pela redemocratização, enfrentando os poderosos dessa maneira.
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