A antiga Curitiba descrita pelo médico Lauro Grein Filho
Lauro Grein Filho foi médico, escritor e membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores. Destacam-se, entre suas obras, os livros “Hora de Lembrar”, “Fatos que Ficaram”, “Luzes da Memória” e “80 Crônicas de um Tempo”. Em 1967, foi escolhido para presidente da Cruz Vermelha do Paraná. Foi também presidente do Centro de Letras do Paraná, no período de 1991 a 1993. Esta entrevista foi gravada em julho de 1997. E ele morreu em Curitiba no ano de 2015, aos 94 anos. * Esta foto de Lauro Grein Filho foi publicada pelo portal da Rádio Banda B em 2015.
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José Wille – Vamos começar falando da cidade de origem da sua família, Rio Negro, de colonização alemã.
Lauro Grein Filho – Exatamente. Sou nascido em Rio Negro, no dia 9 de agosto de 1921. E Grein representa uma família que imigrou para Rio Negro em 1829. Foram para lá 19 famílias e, entre elas, um cidadão chamado Pedro Grein, meu tataravô.
José Wille – Em Curitiba, o senhor chegou em 1926 e foi para a escola de dona Carola, como o senhor conta em um dos seus livros. Como funcionava esta escola na região central de Curitiba naquela época?
Lauro Grein Filho – A escola de dona Carola era uma escola particular, que preparava os alunos para o exame de admissão no ginásio. Entrei para a escola da dona Carola aos seis anos de idade. Morávamos perto, na rua Dr. Pedrosa, número 106. Era perto da praça Rui Barbosa, que era um recanto tranquilo de Curitiba naquela época. E a escola era na André de Barros, que, naquele tempo, chamava-se Misericórdia. Era uma rua muito bonita, com um canteiro mediano de plátanos gigantescos. Era muito aconchegante aquela rua. E a escola de dona Carola ficava entre a Muricy e a Marechal Floriano. Então, era um trajeto muito agradável. Do lado direito, havia a Igreja do Bom Jesus e o Hospital de Caridade e, do lado esquerdo, a Praça Rui Barbosa, que era um imenso largo de terra batida. Mas era muito interessante e muito movimentada, porque, tendo o quartel do 15º Batalhão de Caçadores na frente, era utilizada para exercícios de ordem unida e de educação física e, principalmente, para os desfiles com a banda.
José Wille – Era o local também onde se instalava o circo quando chegava a Curitiba?
Lauro Grein Filho – Sim! Os circos Queirolo e Stevanovich se instalavam ali, mas num local da praça diferente, mais próximo de onde ficava o Colégio Iguaçu, ali na rua 24 de Maio. E, na parte mais distante, ela servia também para os jogos de futebol, principalmente dos meninos do Asilo São Luis, que ali se localizava.
José Wille – Era uma pequena escola, a da dona Carola, na década de 20. Que impressões o senhor guarda?
Lauro Grein Filho – Dona Carola era uma criatura muito bondosa. Era tida como uma professora muito formosa, muito eficiente na época, mas havia o castigo físico. Sim, ela dava reguadas – reguadas generosas, que não doíam, não machucavam, mas elas tinham um grande efeito moral. E a dona Carola usava as reguadas sem parcimônia. Batia mesmo, quando havia necessidade. E um fato interessante era quando as réguas de dona Carola eram oferecidas a ela pelos próprios alunos. Havia uma serraria ali na Dr. Muricy e os alunos iam lá, pegavam aqueles pedaços de madeira, verdadeiras réguas, e entregavam para a dona Carola, instrumento com o qual eles iam ser punidos.
José Wille – Curitiba era uma pequena cidade.
Lauro Grein Filho – Era uma pequena cidade, em torno de 100 mil habitantes. Eu diria que Curitiba, no sentido leste/oeste, começava na Ubaldino do Amaral e terminava no Hospital Militar. Esse era o trajeto dos ônibus da Companhia Força e Luz, aqueles ônibus amarelos, que realizavam esse percurso em mais ou menos 20 minutos, com espera de 10 minutos lá no ponto inicial. Eles vinham, desciam a rua XV, contornavam a Praça Osório e subiam a Vicente Machado até o Hospital Militar. E no outro sentido, o norte/sul, podemos dizer que Curitiba ia da Manoel Ribas, na altura da Praça João Cândido, onde fica a Telepar, até a rua Ivaí, que hoje é a rua Getúlio Vargas. Em qualquer sentido, Curitiba tinha uma extensão mais ou menos de três quilômetros e podíamos fazer esse trajeto em uma hora. Uma hora em cada sentido.
José Wille – Em vários livros, o senhor cita a rua XV.
Lauro Grein Filho – Acho que a rua XV era a única rua de Curitiba, porque ali tudo acontecia. Ali estavam localizados os cinemas. Na avenida Luis Xavier, que se pode ver no início da rua XV, estava o Cine Palácio e o Cine Avenida. Do outro lado, estava o Odeon e o Ópera. Em seguida, do lado direito, estava o Broadway. Na outra quadra, em frente à Associação Médica, que lá funcionava, estava o Cine Imperial, que foi inaugurado com um filme do José Mojica, um ator mexicano. Esse filme foi “O Capitão Aventureiro”.
José Wille – O cinema, naquele período, era bastante importante como ponto de encontro da cidade e de diversão…
Lauro Grein Filho – Sim, o cinema era muito importante. Inclusive as sessões de domingo do Cine Avenida eram altos acontecimentos sociais. Ali reunia-se toda a elite curitibana. Realmente, as sessões do Cine Avenida aos domingos eram o acontecimento curitibano naquelas décadas em que Curitiba era aconchegante, tranquila e bela.
José Wille – Na rua XV, já estavam os engraxates, no primeiro ponto de encontro de Curitiba?
Lauro Grein Filho – Existiam várias charutarias e engraxatarias. Elas se combinavam. E havia um hábito de todas as pessoas irem à rua XV aos domingos para engraxar os sapatos. Havia engraxates mais competentes e mais caprichosos que os outros. A engraxada do sapato custava trezentos réis, mas geralmente a gente dava uma gorjeta. E os engraxates se comunicavam assim: “jolucentão” queria dizer que aquele freguês dava quatrocentos réis em vez de trezentos; “jolareco”, que dava quinhentos réis; e se fosse “julete”, ele dava mil réis e o capricho era maior.
José Wille – O senhor também dedica um capítulo de um dos seus livros à Praça Osório.
Lauro Grein Filho – Depois de morar na rua Dr. Pedrosa, morei na rua Ermelino de Leão, 127. E eu lembro muito dessa nossa mudança, que ocorreu em 31 de agosto de 1928, porque foi a maior nevasca que houve em Curitiba. E a Praça Osório, pela sua vizinhança, foi a minha praça de menino. Era ampla como é hoje, com aquele mesmo repuxo e o coreto, que foi destruído. Era uma grande praça de Curitiba, tanto que nela morou durante certo tempo, quando esteve em Curitiba, o professor César Perneta, a maior figura médica do estado, sem dúvida alguma. Depois de certo período em Curitiba, transferiu-se para o Rio de Janeiro e granjeou uma série de títulos, porque era muito estudioso, muito competente, e foi um verdadeiro nome da medicina nacional. Ao retornar a Curitiba, eu, visitando-o, perguntei-lhe “Então, o senhor voltou para matar as saudades de Curitiba?”. E ele disse “Não tive oportunidade de matar saudade alguma, porque a Curitiba do meu tempo não existe mais. Ela é completamente diferente. Não vejo uma paisagem que me dê reminiscências daquele tempo”. O professor Perneta morava na Praça Osório, que era muito diferente hoje da daquele tempo, a década de 30. Hoje, ela é uma área perigosa da cidade, agressiva, de assaltos, de trombadinhas que a frequentam, principalmente à noite, tornando-a um setor perigoso da cidade.
José Wille – O senhor já tinha, nos tempos de estudante, atividade jornalística em “O Dia” e a “Gazeta do Povo”. Cobria, principalmente, o esporte.
Lauro Grein Filho – Sim, efetivamente. Comecei em “O Dia” em 1937, quando eu tinha 16 anos, na página esportiva que era dirigida pelo Antônio Tupi Pinheiro, pelo Flávio Ribeiro, que é advogado, e, depois, pelo João Ribeiro. Naturalmente, o futebol, o esporte de todas as torcidas, era completamente diferente. Era um futebol todo amador. As pessoas vestiam e suavam as suas camisas. Havia já essa grande rivalidade entre Coritiba e Atlético e os quadros eram permanentes. Quer dizer, a pessoa pertencia a uma determinada agremiação – por exemplo, o Coritiba – e se eternizava naquela mesma camisa. Eu me lembro da formação do grande Coritiba daquela época: Rei; Cuca e Pizzato; Coutinho, Nilo e Corruíra; Laudelino, Polenta, Emílio, Pizzatinho e Carnieri.
José Wille – O senhor lembra da escalação?
Lauro Grein Filho – É da grande escalação. E também lembro da escalação do Atlético: Alberto, Julinho e Borba; Rosa, Fascinni e Guaxupê; Levorato, Marreco, Orbino, Zender e Maranhão. Foi um grande quadro o do Atlético.
José Wille – Como era o Atletiba naquela época?
Lauro Grein Filho – Os juízes se recatavam em calças brancas compridas. Não havia agressão ao juiz. Às vezes, a torcida invadia o campo – isso acontecia porque não tinha alambrado, não tinha essa proteção. O ambiente era de disputa, havia animosidade, mas depredação, não. E as grandes assistências, em função da população diminuída, eram de 5 mil. E isso era uma lotação significativa naquele tempo.
José Wille – O interventor Manoel Ribas gostava de cavalos e, com isso, muita gente também passou ir ao turfe?
Lauro Grein Filho – O Manoel Ribas foi um grande incentivador do turfe no Paraná. Cobri o esporte em “O Dia” até 1941, quando passei para a “Gazeta”, onde fiz somente o turfe. O Manoel Ribas incentivou a criação de cavalo puro-sangue aqui no Paraná, trazendo uma série de bons reprodutores. A autoridade dele era muito grande, porque ele nomeava os próprios prefeitos. Ele era o verdadeiro dono do Paraná. E, naquele momento, era muito interessante um aconchego, uma proximidade com o interventor. Isso dava muito prestígio. Ele comparecia habitualmente a todas as reuniões turfistas. Aparecia lá pelas três e meia da tarde no carro oficial do Palácio, que era uma Lincoln-Zephyr V12. E, imediatamente, todas aquelas autoridades, todas aquelas pessoas que estavam lá, esqueciam até certo ponto as corridas e seus resultados para se dedicarem a um diálogo com ele. E o seu Ribas ia lá para a tribuna de honra, conversava com secretários de estado que estavam lá; com o presidente do Jockey Clube, o professor Aramis Athayde, que era uma figura importante politicamente, intelectualmente; com o professor Guimarães, grande criador; com o secretário de estado Fernando Flores, enfim…
José Wille – Essas pessoas tinham medo de vencer na corrida o cavalo do interventor?
Lauro Grein Filho – Conta-se que, certa vez, o senhor Alarico Vieira de Alencar, que é de família importante e tradicional de Curitiba, irmão do meu professor João Vieira de Alencar, de clínica cirúrgica, tinha um cavalo chamado Oásis. Um cavalo importado, que, certa feita, em um páreo, derrotou o cavalo do seu Ribas. E ele ficou muito preocupado – “Como foi acontecer essa desgraça? Como vou aparecer agora para o seu Ribas? Como esse cavalo foi ganhar essa corrida?”. Então, ele ficou muito preocupado, mas eu acho que o seu Ribas também tinha espírito desportivo e acho que foi um episódio apenas jocoso. Mas que aconteceu, aconteceu!
José Wille – E o autoritarismo desse período de Vargas, que tinha aqui, como seu representante, o pontagrossense Manoel Ribas?
Lauro Grein Filho – Essa é uma situação que eu relato nesse último livro, em que publiquei coisas nossas. Estávamos em um grupo de amigos e eu, o Pacífico Fatuch, o Luis Xavier Viana e o Douglas Muniz Gomes resolvemos passar um carnaval em Matinhos. E nós tínhamos passagem de ida e volta, com a volta marcada para a Quarta-Feira de Cinzas, às nove horas. Nesse horário, comparecemos lá para apanhar o ônibus, que estava completamente lotado. Insistimos que devíamos entrar no ônibus e fazer a viagem de qualquer maneira. Mesmo lotado, trepamos no ônibus, onde tem o bagageiro, e criou-se um verdadeiro tumulto. Esse tumulto foi imediatamente arrefecido, quando saiu do interior do ônibus a dona Conceição Flores, que era senhora do major Fernando Flores, então secretário de Justiça, e disse simplesmente “Vou telefonar para o meu marido”. De fato, telefonou, pois havia um telefone ali no armazém onde era ponto de parada do ônibus. Imediatamente, paramos nossa rebeldia e nos acomodamos, porque sabíamos que alguma coisa iria nos acontecer. O ônibus então foi liberado, saiu e nós tratamos de providenciar nossa condução através de uma precaríssima caminhonete até Paranaguá. Quando chegamos próximos a Paranaguá, nossa caminhonete foi interceptada por dois soldados da Polícia Militar, que nos levaram imediatamente para a delegacia. E daí nós fomos trancafiados pelo então delegado capitão Palmiro. E ficamos na prisão, uma prisão desconfortável, que não tinha nada, nem onde sentar. Era um espaço redondo, com umas celas que não aconselhavam que a gente entrasse. Não havia ainda o excesso de população carcerária. Éramos nós quatro e mais uns três ali, que se julgavam também injustiçados. E lá nós permanecemos umas duas horas mais ou menos, até que a dona Conceição Flores chegou e autorizou a minha libertação e a do Pacífico Fatuch, porque não fomos muito efusivos, muito veementes no nosso protesto. E os dois outros, o Douglas e o Luis Xavier Viana, tiveram ordens de permanecerem presos até a saída do trem, o que seria um castigo para eles não retornarem a Curitiba naquele dia. Era um acontecimento normal naquele Estado Novo de Vargas.
José Wille – O que leva a entender porque havia pouca movimentação estudantil na fase em que o senhor esteve na universidade, que foi de 1938 a 1943. Mobilização mesmo só houve pela entrada do Brasil na Segunda Guerra.
Lauro Grein Filho – Sim. Éramos muito, muito disciplinados. E nem poderia ser de outra maneira. Sofríamos a coerção da família, da sociedade, dos professores, do próprio regime, de maneira que era uma disciplina total. Desde as vestes, que eram formais: colarinho e gravatas. Diante dos professores, nós nos intimidávamos, não tínhamos liberdade nenhuma. Não havia greve, não havia protesto, absolutamente nada. Mas, por ocasião da guerra, principalmente quando foram noticiados os afundamentos dos navios brasileiros por submarinos alemães no nosso litoral, aconteceram alguns protestos e depredações na cidade, principalmente atingindo as firmas de proprietários alemães. Isto aconteceu como uma reação natural, porque o Brasil tinha entrado na guerra.
José Wille – O senhor, em um dos seus livros, cita o nosso litoral. Como era na década de 30?
Lauro Grein Filho – Nessa década, a temporada de praia era de 15 de junho a 1º de julho. Unicamente 15 dias, porque não se arriscava ir durante o verão, pela incidência da maleita, que havia mesmo. Até no inverno se registravam alguns casos de maleita. Tive um colega de turma que, em Guaratuba, apanhou maleita no inverno. Então, eram apenas 15 dias. E uma viagem daqui a Guaratuba demorava o dia todo. A gente apanhava o trem e ia até Paranaguá. Em Paranaguá, a gente almoçava no hotel e, depois, pegávamos a jardineira, um ônibus muito precário. E ele ia até a passagem, onde hoje fica o ferryboat. E esse trajeto, em parte, era feito na praia mesmo, porque não tinha estradas. Eram três imensas retas e, depois, o trajeto pela praia, que ficava na dependência da maré. Então, nunca se sabia quanto tempo ia durar essa viagem. Às vezes, tínhamos que esperar o refluxo da maré para permitir o tráfego da jardineira. Lembro que, numa ocasião, chegamos na passagem, onde tinha uma pequena lancha para nos levar até Guaratuba no fim do dia, quase à noite. Depois de apanhar esse barco, fazíamos a travessia da baía até o trapiche. Então, uma ida de Curitiba a Guaratuba era de um dia.
José Wille – E a precariedade devia ser grande naquelas pequenas cidades. Não existia o hábito de se viajar para o litoral?
Lauro Grein Filho – Não. Por exemplo, em Guaratuba, no auge da temporada, podíamos contar umas sessenta, oitenta pessoas. Não eram mais que isso. Alguns tinham suas casas, que tinham apenas três acomodações. O Hotel Guaratuba, que era o principal, custava dez mil réis a diária. Tinha a pensão da Antonieta, que era 6. E tinha o Govo, que era 6 também. Então, nessas três acomodações é que nós ficávamos. E com uma característica: a praia ficava distante. E todos os banhistas iam para a praia de roupão. Então, era uma procissão colorida daqueles roupões, porque ninguém se atrevia a ir só de calção. O roupão era uma indumentária imprescindível. Todos iam de roupão até a praia. Quando chegavam à praia, tiravam o roupão. E tinha as cabines. As senhoras, as moças alugavam essas cabines de madeira para se trocarem, colocarem seus vestidos, seus maiôs. Aqueles maiôs de sainha, muito recatados. Quase todos entravam na água, não tinha muito esse negócio de banho de sol, porque queimava, e não tinha ainda esses protetores. A gente usava um óleo chamado Da Gelle, mas aquilo não significava nada, aquilo não tinha efeito algum. De maneira que, se ficasse muito no sol, queimava-se mesmo, e era desagradável. Ia-se para a água e, imediatamente, na volta, vestia-se o roupão e retornava para casa. Essa era a sistemática, e não seria diferente. Também não havia um automóvel na praia, porque não havia possibilidade de levar um carro até lá. O trajeto à praia terminava na passagem. E dali até a baía, na lancha em que se ia, não havia a possibilidade de levar o carro. Então, Guaratuba não tinha carro.
José Wille – E a Universidade em 1938, onde o senhor entrou como aluno. Como era aquele prédio, tão imponente naquela Curitiba tão pequena?
Lauro Grein Filho – Terminei o curso ginasial no Novo Ateneu, em 1935. Naquela época, foi instituído o pré-médico, que não existia anteriormente. Foram dois anos que eu fiz no Ginásio Paranaense, 1936 e 1937. Depois, em 1938, é que eu fiz o vestibular para ingresso na Faculdade de Medicina. O nosso vestibular foi tranquilo. Hoje, o vestibular é uma guerra, é uma disputa. Aquele meu vestibular foi uma tranquilidade, porque éramos 54 candidatos para 100 vagas. E havia interesse na nossa aprovação, porque representávamos o ganho, o recurso, a receita da Faculdade de Medicina, através das nossas mensalidades. Então, houve a aprovação de todos, com uma única e muito esquisita exceção. Foi reprovada a senhora Catarina Lufler, que era uma médica formada na Alemanha. E ela foi a única reprovada, reprovada na cadeira de física pelos professores Petit Carneiro, Colomino Ferreira da Mota e Francisco Dasseti. Essa senhora, no ano seguinte – 1939 – fez novamente o vestibular e foi aprovada. E, seis anos depois, formou-se, tornando-se, então, médica brasileira.
José Wille – Os estudantes ainda usavam terno e de gravata.
Lauro Grein Filho – Éramos imensamente disciplinados. Eu jamais presenciei alguém que não estivesse de colarinho, gravata, chapéu, porque todos usavam chapéu também. Naquele tempo, fazia mais frio e a gente se agasalhava mais. Mas, independente de qualquer temperatura, a vestimenta era absolutamente formal. E entre nós havia até uma competição de gravatas. Todo mundo gostava de ter gravatas bonitas e achava-se que a gravata vermelha era, entre todas, a mais vistosa.
José Wille –Era raro ver uma mulher entre os estudantes?
Lauro Grein Filho – Era muito raro. Na minha turma, que tinha relativamente muitas mulheres, eram apenas quatro: as doutoras Hilda Frischmann, Isolda Winter, Eleonora Godo Rocha e Gilda Guignone.
José Wille – O senhor fala do professor João Cândido, que tratava da importância de aliar a medicina à bondade. Muitas vezes, é atenção, o que espera o paciente.
Lauro Grein Filho – O professor João Cândido era titular de Clínica Médica da sexta série. Ele dava suas aulas na enfermaria a que pertencia, na Santa Casa. Ele era um exemplo de dedicação ao doente, de bondade, de desvelo, de caridade. Ele sentava ao lado do doente e com aquelas mãos, que nos pareciam imensas, ele acariciava o doente. Na apalpação, na escuta… Ele era de um carinho extraordinário, tinha um carisma, era um exemplo para todos nós. Guardo a melhor das imagens do professor João Cândido. E devo dizer que conquistei um prêmio de primeiro lugar em Clínica Médica na cadeira do professor João Cândido.
José Wille – O senhor acha que a medicina, com o tempo, perdeu essa atenção, esse tratamento mais humano com o paciente, talvez pelo excesso de atendimento?
Lauro Grein Filho – Era muito diferente, completamente diferente, mas em função da própria população, da explosão demográfica e, principalmente, por influência dos grandes recursos e grandes avanços que a medicina conseguiu. Antigamente, o médico tinha que apalpar, tinha que escutar, tinha que percutir. Quer dizer, ele manuseava o doente. Com a evolução da radiologia, da ecografia, da tomografia computadorizada, o doente ficou mais distante das atenções do médico, desse manuseio de que necessitava anteriormente. Então, isso, de certa forma, contribuiu… Os exames complementares, essa solicitação de exames, que dispensam aqueles meios de semiologia tradicionais, tudo isso afastou. Depois, a premência do tempo, uma porção de fatores… Enfim, a medicina de hoje é completamente diferente da que eu vivi nos primórdios da minha carreira. Não há fórmula de comparação. Eu diria que são completamente diferentes.
José Wille – O trabalho do médico, quando o senhor se formou, era muito mais intuitivo, com poucos instrumentos de trabalho?
Lauro Grein Filho – Sim. O grande instrumento do médico era o termômetro. Eu, por exemplo, quando estive em Castro, não havia nem laboratório de análises clínicas, de maneira que o médico se guiava muito pela anamnese do doente. Ele procurava, de qualquer maneira, tirar subsídios, informações dessa anamnese, porque nem todos os doentes ofereciam elementos para orientar o médico! Eles se prendiam em crendices, atribuindo a doença a coisas que não existiam. Pelos métodos de semiologia, escuta, apalpação, percussão, além do exame objetivo, medindo a temperatura, tomando-se o pulso e tudo o que a gente tinha que vivenciar – por exemplo, distinguir uma bolha cardíaca normal de um som atípico – é que se chegava a um possível ou provável diagnóstico. Então, tudo isso era muito difícil.
José Wille – Se fosse alguma coisa de maior gravidade, não havia grande esperança?
Lauro Grein Filho – Havia um desconhecimento de muita coisa. A medicina era muito limitada. Por exemplo, um jovem que tirasse o seu curso médico naquela época tinha o direito de ir ao jornal e colocar um anúncio nas seguintes condições “Doutor fulano de tal, médico de adulto e de crianças”. Isso quer dizer que ele já englobava tudo: doenças do coração, pulmão, fígado e intestino; aparelho respiratório e digestivo; sistema nervoso – ele colocava tudo ali, porque os conhecimentos em todas essas áreas eram muito limitados. A medicina era completamente diferente. Diz-se até que, nesses últimos vinte e cinco anos, a medicina progrediu mais que durante toda a sua existência.
José Wille – O que levou o senhor a ir para o interior e ficar quinze anos numa cidade pequena, naquela época?
Lauro Grein Filho – Depois que me formei, em 1943, fui para o Rio de Janeiro. E lá eu fiquei, durante o ano de 1944, como estagiário do Hospital Miguel Couto, a serviço do professor Mota Maia, que era um dos luminares da cirurgia naquela época. E regressei com um certo potencial, com um certo cabedal de conhecimento cirúrgico que não era possível a gente adquirir aqui no curso tradicional. E eu não tinha perspectiva alguma. Era uma pessoa que estava formada e fiquei durante uns 20 dias em Curitiba sem ter nenhuma meta, nenhum objetivo. Até que me encontrei, certa noite, na rua XV, com o Paulo Novaes, que era acadêmico de medicina, natural de Castro, meu amigo, e que me disse “Por que você não vai para Castro? Lá, tem um hospital e o médico que estava lá, doutor Libanio Cardoso, atritou-se com o Ribas e foi demitido”. E justamente o que eu desejava era um hospital para prosseguir, para ter uma oportunidade de evoluir com os meus conhecimentos cirúrgicos. Era diretor-geral da Saúde Pública, na ocasião, o doutor Bichat de Almeida Rodrigues, que eu não conhecia. Mas, no dia seguinte, resolvi ir até a diretoria geral da Saúde Pública, que era ali na praça Zacarias, e falei facilmente com ele. Não tinha mais ninguém na espera e disse que soubera dessa oportunidade, dessa vaga, e que a pretendia. Depois de quinze minutos, a conversa evoluiu de tal maneira satisfatória que ele me disse “Olha, se depender de mim, você está nomeado. Eu vou falar com o Ribas”. Mais sete dias e ele me convidou para ir até Castro e eu fui conhecer a cidade. Fui muito bem-recebido pelo prefeito Vespasiano Carneiro de Mello e voltei, trazendo de Castro uma imagem desfavorável, porque era uma cidade que não tinha calçamento. E o mês era de fevereiro, muito quente, uma poeira muito intensa na cidade; à noite, não tinha luz. A luz era impraticável, era como se fosse uma vela. Então, quando voltei, disse para minha mãe que estivera em Castro e que era uma cidade tão atrasada, tão horrível, mas que eu iria assim mesmo, porque tudo deu certo. “Falei com o Bichat, deu certo; com o seu Ribas, deu certo. E lá fui bem-tratado”. E eu iria, nem que fosse para ficar somente um tempo lá. O meu projeto era ficar uns 4, 5 meses, suficientes para adquirir o numerário, o dinheiro necessário para adquirir um consultório da Lutz Ferran, um consultório sofisticado da época. Mas fiquei lá por 16 anos! Fui com as seguintes funções: diretor do Hospital de Caridade Bom Jesus; diretor do Preventório Infantil Manoel Ribas; médico-chefe do Posto de Higiene; médico da Escola Rural Olegário Macedo; diretor da Maternidade Sant’Ana. Então, todos esses títulos me envaideceram muito, me julguei um polivalente, capaz de fazer qualquer coisa. E o fato é que fui ficando… Fui sozinho e, quando voltei, 16 anos depois, saí de lá acompanhado de seis mulheres: minha mulher e cinco filhas.
José Wille – Essa experiência no interior, na década de 1940 – como era o trabalho de um médico sem recursos, atendendo a toda uma região?
Lauro Grein Filho – Antes de ir para Castro, como eu disse, fiquei um ano no hospital Miguel Couto, no Rio de Janeiro. Ali, o trabalho era muito intenso, tanto de ambulatório quanto de pronto-socorro, de maneira que me senti apto ao exercício da medicina e daquela medicina. Posso dizer que, no tempo que estive em Castro fazendo todas as especialidades possíveis, inclusive obstetrícia, cesarianas, traumatologias com redução de fraturas – enfim, todos os aspectos da medicina – não tive nenhuma sensação de ignorância, de limitação. Achei que iria resolvendo os casos de acordo com a época, de acordo até com a terapêutica da época. De início, não existiam os antibióticos poderosos – a penicilina apareceu somente mais tarde, em 1947. Então, eu não recordo assim de uma dificuldade maior, de alguma coisa que me preocupasse mais. Tudo foi decorrendo naturalmente. Naquele tempo, os cirurgiões eram, até certo ponto, raros no interior. Além de Castro, atendi uma população do Norte do Paraná, tanto do Norte Pioneiro como do Norte Novo, em cidades como Siqueira Campos, Joaquim Távora, Wenceslau Braz, Ibaiti, Tomazina. Depois, em outro segmento, Nova Esperança até Assaí, Nova Colina… E recebi até doentes do sul de Minas Gerais e de cidades de São Paulo. Fiz uma grande clínica em Castro, de maneira que foi um período muito feliz. Eu fui para lá no período da ditadura de Vargas e do período autoritário de Manoel Ribas. Mas, em 1945, houve a redemocratização do país, com o primeiro pleito, que foi entre o brigadeiro Eduardo Gomes e o Dutra. E eu fui imediatamente incluído na política. Certa vez, o coronel Vespasiano, que era prefeito de Castro e homem de confiança de Manoel Ribas, me chamou em sua residência e disse “Doutor Lauro, quero lhe comunicar que o senhor foi nomeado vice-presidente do Partido Social Democrático”. Eu estranhei e decerto fiz uma fisionomia significativa, mas ele olhou para mim e disse “Ordens do seu Ribas!”. Quer dizer, já estava tudo definido. Assim, ingressei no Partido Social Democrático e na política.
José Wille – Mas o senhor não teve vontade de seguir a carreira política? Tinha um potencial eleitoral em Castro, mas não quis levá-lo adiante?
Lauro Grein Filho – Tive mais influência ali nos bastidores. Uma vez só eu disputei uma eleição, que foi para vereador. E fui o vereador mais votado da história do município – tive 901 votos. Naquele tempo, era um coeficiente que elegia deputado estadual. Os deputados se elegiam com votações menores até do que essas. Fui presidente da Câmara, mas meu maior interesse era ser médico. Tive muita influência política nesses municípios onde eu exercia a medicina, nos municípios vizinhos. Quando chegou a eleição de 1960, cujo candidato do Partido Social Democrático era o engenheiro Plínio Franco Ferreira da Costa, com a derrota do PSD, achei que deveria deixar Castro. Daí, tomei essa resolução, deixando uma imensa e promissora clínica e me desfazendo de tudo o que eu tinha em Castro.
José Wille – O senhor tinha um cinema em Castro, tinha rádio, jornal e, financeiramente, teria valido a pena permanecer na cidade.
Lauro Grein Filho – Eu estava muito bem lá, no aspecto econômico. Houve uma evolução até muito significativa. Mas me desfiz, vendi o hotel, a farmácia, a rádio, o jornal, o cinema – do qual eu tinha umas cotas, não era totalmente meu. Eu me desfiz de tudo, até do meu mobiliário. Resolvi ir para o Rio fazer uma nova especialidade, porque achei que havia me desatualizado, e rever toda a medicina não era mais possível. As especialidades já estavam se definindo e eu teria que escolher uma. Então, optei pela otorrinolaringologia, porque achei que era acessível. Eu tinha já experiência cirúrgica, de maneira que achei que teria facilidade dentro dessa especialidade. Então, fui ao Rio de Janeiro, fiquei mais um ano lá, já com a família constituída, e voltei em 1962 para Curitiba, iniciando uma nova vida e uma nova carreira, não mais com 23 anos – a idade com que fui para Castro – mas já com 40 anos.
José Wille – O senhor foi presidir a Cruz Vermelha no Paraná e já está há trinta anos se dedicando a esse trabalho. Vamos lembrar a origem da Cruz Vermelha.
Lauro Grein Filho – A Cruz Vermelha pode ser definida como uma instituição civil de benemerência destinada a atender o homem nas suas necessidades físicas e sociais. A Cruz Vermelha nasceu nos campos de batalha. Corria o ano de 1859, quando Henry Dunant, um cidadão suíço, deixou sua cidade natal, Genebra, e foi para o norte da Itália, para tratar com Napoleão III sobre concessões territoriais na Argélia. O motivo era econômico. Ele encontrou Napoleão em luta com as forças austríacas de Francisco José e presenciou, do alto de uma colina histórica, uma das mais sangrentas batalhas da humanidade – a batalha de Solferino, na qual quatrocentos mil homens lutaram, deixando um saldo de quarenta mil feridos. E diante daquele espetáculo dantesco, com todas aquelas criaturas agonizantes, ele teve a ideia da formação de uma entidade especificamente destinada a socorrer os feridos de guerra. Este foi o seu primeiro trabalho e o seu primeiro ideal. Passados três anos, no dia 8 de maio de 1862, surgiu a Cruz Vermelha, com seu emblema, que é uma cruz vermelha sobre fundo branco, para contrastar com a bandeira da Suíça, que é fundo vermelho e cruz branca. Hoje, a Cruz Vermelha tem 135 anos. E, durante todo esse tempo, não houve uma calamidade pública, uma guerra, um conflito, uma catástrofe, em que ela não estivesse presente com os seus homens, com o seu voluntariado, com os seus princípios, com a sua ação e dedicação. Ela existe hoje em todos os países do mundo e é muito significativa, inclusive tendo o interesse e o respaldo de todos os governos. E a cúpula da Cruz Vermelha reúne, de 4 em 4 anos, além dos presidentes das entidades, também os governantes e presidentes dos países, porque eles são muito interessados em prestigiar e preservar a autoridade e o conceito da Cruz Vermelha.
José Wille – Vamos finalizar falando da Cruz Vermelha paranaense, onde o senhor já tem 30 anos de atividades.
Lauro Grein Filho – A Cruz Vermelha no Brasil, infelizmente, não tem a expressão, nem a grandeza, nem a significação que tem em outros países. Devíamos ter aqui, no mínimo, umas quatro mil filiais de Cruz Vermelha, que fariam um trabalho notável no terreno da saúde e da assistência social, um trabalho significativo e imenso. Infelizmente, temos apenas 14 filiais estaduais e Curitiba tem uma das filiais mais importantes, ao lado de Minas e São Paulo. Mas temos a consciência de estarmos cumprindo com os ideais e objetivos da Cruz Vermelha, dentro das dimensões da Cruz Vermelha brasileira.