Hélio Puglielli relembrava a história dos jornais no Paraná
Hélio Fileno de Freitas Puglielli é um grande nome da história da imprensa, da cultura e do ensino de comunicação no Paraná. Advogado por formação, optou pelo jornalismo, uma tradição de família. Foi também superintendente do Teatro Guaíra, diretor do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná e professor de várias gerações de jornalistas.
Entrevista gravada em agosto de 1997.
José Wille – Seu avô, João Rodrigo de Freitas, é considerado o primeiro jornalista profissional do Paraná, atuando já em 1918…
Hélio Puglielli – Exatamente. Meu avô veio moço da cidade de Morretes, na nossa baixada litorânea, e se dedicou ao jornalismo de maneira absorvente a tal ponto que eu considero que tenha sido ele o primeiro jornalista realmente profissional no Paraná, uma vez que ele vivia e sustentava a família através da atividade jornalística. Ele chegou a dirigir “O Dia” – coisa inusitada, porque ele não era proprietário, nem sócio da empresa jornalística. Ele chegou também a ser convidado, na década de 20, a assumir, por poucos meses, a direção de dois jornais no Rio de Janeiro, “A Esquerda” e “A Batalha”, para dar impulso à campanha Pró-Revolucionária. Com a vitória da Revolução, ele retornou a Curitiba e deu prosseguimento a sua carreira, até o falecimento em 1945, poucos dias após a vitória das democracias contra o Eixo, na Segunda Guerra Mundial. Ele fez crônicas durante o período da guerra e, mesmo antes do Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial, estas crônicas eram ouvidas por praticamente todos os curitibanos, lidas por uma personalidade marcante do Paraná – Aloísio Finzetto – no microfone da PRB2. Isso acontecia nos anos 42, 43, 44. Não havia televisão e as rádio-emissoras do Rio e São Paulo não tinham tanta penetração.
José Wille – Seu avô morava dentro do próprio jornal…
Hélio Puglielli – Exatamente, nesse jornal, “O Dia”, do qual foi diretor. O jornal situava-se na praça Carlos Gomes, num grande sobrado. No térreo desse sobrado, funcionava a oficina do jornal, a redação e, em cima, residia o meu avô, com toda a família, minha mãe, todos os outros seis integrantes da família. E era uma coisa interessante, porque o meu avô ouvia as notícias pelo rádio, escrevia a mão – porque, na década de 20, as máquinas de escrever não eram comuns nas redações curitibanas, e descia aquelas notas de última hora para serem incluídas no jornal que ia ser impresso dentro de poucos momentos. Descia-as por um buraco que tinha no assoalho, porque o quarto dele era em cima e a oficina era embaixo.
José Wille – O seu pai foi engenheiro, mas acabou aconselhando-o para que não fizesse Engenharia, quando o senhor foi para a Universidade Federal do Paraná.
Hélio Puglielli – Exato. Meu pai era filho de emigrante italiano, um aluno talentoso, que estudou no antigo Ginásio Paranaense e foi estimulado por um dos professores, o célebre Lysimaco da Costa, a estudar Engenharia. Ele tinha outras ideias, mas esse professor o influenciou. E comigo aconteceu o contrário: eu decidi seguir as pegadas paternas, estudar Engenharia, pois era bom aluno em matemática, mas o meu pai achou que eu não devia seguir esta carreira. Eu dei ouvidos à sugestão paterna e optei pelo curso de Direito, já com a intenção de exercer o jornalismo. Logo que comecei o curso pela manhã, na nossa antiga Faculdade de Direito da Universidade do Paraná – isso em 1957 – eu já comecei a trabalhar na redação do jornal “O Estado do Paraná”. Tenho 40 anos de jornalismo, estou aposentado de outras atividades, mas o jornalismo ainda exerço, atualmente num jornal local.
José Wille – Sua primeira atividade foi a de copydesk, o trabalho de redação final?
Hélio Puglielli – Exato. Na época, os repórteres dos jornais não tinham gabarito suficiente para fazer texto definitivo daquilo que escreviam. Então, era costumeira na organização das redações a presença de uma equipe de copydesks, que reescrevia aquelas matérias. Muitas vezes as matérias eram tão sofríveis que tínhamos que complementar aquilo com telefonemas e colher dados paralelos para realmente fazer algo que pudesse ser publicado.
José Wille – Para quem pretendia escolher um curso aqui no Paraná, naquela época, as opções eram poucas?
Hélio Puglielli – Eram. Na minha época, na década de 50, ainda havia aquela trinca célebre: Engenharia, Direito e Medicina. E os outros cursos, que inclusive tinham duração menor, eram cursos considerados secundários. Hoje em dia, não; tenho uma filha que está no seu quinto ano de estudos de Veterinária. Geralmente, a juventude mais talentosa da época buscava as opções de Engenharia, Medicina e Direito. Hoje, sem dúvida nenhuma, se eu tivesse que escolher, estudaria Informática.
José Wille – Por que tantos estudantes de Direito tinham ligação com os meios de comunicação?
Hélio Puglielli – É porque o Direito, de certa forma, dá fundamentos para que as pessoas compreendam melhor, através das instituições jurídicas, o funcionamento da sociedade, seus aspectos políticos, as instituições, o regime – o sistema, enfim. Então, geralmente, na época, as pessoas formadas em Direito é que se dirigiam ao jornalismo, que não era uma profissão praticamente, mas, em 99% dos casos, uma espécie de “bico”. Os profissionais mais familiarizados com o estudo da sociedade, com os acontecimentos políticos, geralmente bacharéis em Direito, exerciam o jornalismo, mas havia exceções, como meu tio João de Deus Freitas Neto, que é médico e foi jornalista durante quatro décadas; Aloísio Blasé, também médico, que foi editor político da Gazeta do Povo. Mas, normalmente, eram pessoas com formação universitária.
José Wille – O jornalismo aqui, na década de 50, tinha jornais ligados a diferentes grupos políticos. Cada governador ou ex-governador, por exemplo, tinha o seu jornal ligado a um grupo.
Hélio Puglielli – Exatamente. O jornalismo do Paraná começa justamente nestes termos, quando o Zacarias de Góes e Vasconcelos chama Cândido Lopes para fundar o primeiro Jornal do Paraná, o “19 de Dezembro”. Então, sempre houve uma ligação entre o oficialismo, o governo e a imprensa no Paraná. Isso, sob alguns ângulos, é lamentável, porque há uma convivência estreita demais entre o governo e imprensa. Anteriormente, quando houve a campanha pela República, surgiu um jornal privilegiado pelo oficialismo, “A República”, que, de 1889 a 1930, foi o rei da imprensa paranaense. Este jornal refletia os sucessivos governos, era financiado por esses governos, e faleceu de maneira inglória, depredado na Revolução de 30 pelo povo, que estava furioso contra o antigo regime, e desapareceu assim, sem deixar maiores marcas na nossa imprensa. Quando comecei minha carreira jornalística, em 1957, o quadro da nossa imprensa era polarizado por dois jornais, o “O Estado do Paraná”, onde comecei a trabalhar – e que foi minha escola de jornalismo, com uma equipe de reportagem bastante precária – e o “O Diário do Paraná”, que pertencia à cadeia dos Diários Associados. Eram jornais fundados recentemente e, portanto, modernos na época. Existiam os jornais antigos, como “O Dia” – que meu avô dirigiu – e “A Gazeta do Povo” – longe de ser a potência que é hoje. Então, os principais jornais, os realmente bons, eram “O Diário do Paraná” e o “O Estado do Paraná”, inclusive com uma rivalidade grande, até em termos pessoais, entre os jornalistas que trabalhavam lá, que não se misturavam, viviam em mundos diferentes, alguns ardorosos. Pessoas como o atual Secretário da Cultura, Eduardo Rocha Virmond, que era de “O Diário do Paraná” e que até hoje considera uma coisa importante na vida dele ter trabalhado neste jornal, hoje extinto, mas que marcou época na história do jornalismo paranaense.
José Wille – Como era o jornalismo boêmio que existia até a década de 50?
Hélio Puglielli – O profissionalismo é uma característica recente da atividade jornalística, que podemos datar aqui no Paraná por volta de 1960. No jornalismo anterior, as pessoas não eram profissionais, não viviam do jornalismo exclusivamente. Portanto, tinham suas ocupações durante o dia e o jornalismo era uma tarefa a ser desempenhada no período noturno. Quando saíam do jornal, naturalmente rumavam para outros locais onde se caracterizava essa vida boêmia, da qual não fugiu o meu avô – dando muitas dores de cabeça a minha avó, em função dos períodos que ele chegava muito tarde em casa. A exceção foi durante aquela temporada em que ele morava no jornal.
José Wille – A profissionalização veio em 60, mudando essa tradição?
Hélio Puglielli – Exatamente. A profissionalização já começou a ocorrer quando eu comecei a trabalhar, inclusive em função dos melhores padrões de remuneração que estes novos jornais ofereciam. Meu tio, Freitas Neto, conta que passou do jornal “O Dia” para o “O Estado do Paraná” ganhando quatro ou cinco vezes mais. Isto fez com que as pessoas se dedicassem mais ao jornalismo, abandonando suas atividades paralelas e levando a profissionalização a essas novas empresas jornalísticas que se estabeleceram no Paraná. Inclusive o jornal “Última Hora”, que estabeleceu uma sucursal aqui e depois uma edição regional, já nos primeiros anos da década de 60, contribuiu muito para elevar o padrão salarial do jornalista paranaense e, consequentemente, fomentar a profissionalização. Mas a profissionalização completa e definitiva do jornalismo só surge com a obrigatoriedade do diploma profissional, que ocorreu em 1969. Os cursos de jornalismo já existiam, mas praticamente não se dava muita importância a eles, porque não era obrigatório o diploma. Eu mesmo, em 1956, mesmo existindo o curso de jornalismo, procurei o curso de Direito, porque não se atribuía grande importância aos cursos. Com obrigatoriedade do diploma, muda o enfoque das pessoas que se destinavam realmente a optar por aquele curso, a se preparar realmente para aquela carreira, e isto evita que haja o que existia antes, um jornalismo romântico, boêmio, amadorístico. Nós passamos a ter, realmente, o jornalismo como profissão, como ganha-pão das pessoas. E, apesar das dificuldades que conhecemos mais aqui no Paraná, a partir da década de 60, não deixamos de ver com certa nostalgia aquele jornalismo dos velhos tempos, menos comprometido, que não deixa de ter o seu fascínio, sob determinado ângulo.
José Wille – Nas décadas de 50 e 60, dava-se maior ênfase ao noticiário internacional. Hoje, os jornais locais valorizam mais os assuntos da própria cidade. O que explicava essa característica dos jornais mais antigos?
Hélio Puglielli – Os jornais mais antigos tinham necessidade de apresentar ao seu leitor uma cobertura completa, abrangendo a área internacional, área nacional, área local. Isso acontecia porque os jornais locais não enfrentavam a concorrência de jornais vindos de fora. Então, como o leitor não tinha outras fontes, não tinha televisão, não tinha telejornal, o radiojornalismo não era dos mais completos, em termos locais, os jornais tinham que ter um âmbito muito diversificado e, é claro, recorriam aos serviços das agências noticiosas. Eu mesmo, no período que trabalhei na Televisão Iguaçu, de 1968 a 1973, tive que traduzir texto em inglês que vinha dos filmes mandados pela CBS, que eram em filme ainda, não estava em uso sequer o videotape, isso bem no início de 68. Depois, mudou.
José Wille – Não existiam ainda as redes de TV e assim cada emissora fazia a sua própria cobertura internacional?
Hélio Puglielli – Exato. Eu era editor internacional do Show de Jornal, telenoticiário que marcou época. Foi iniciado pelo Ducastel Nicz, jornalista já falecido, e continuado depois pelo Adherbal Fortes de Sá Junior e pelo Renato Schaitza. Eu fazia a parte internacional do Show de Jornal. Logo depois, vieram as redes. A coisa se modificou e o telejornal local se limitou ao jornalismo local, porque é através das redes que vem agora o noticiário nacional e internacional.
José Wille – Que impacto teve essa mudança, a chegada das redes sobre os departamentos de jornalismo, já que muito conteúdo passava a vir pronto?
Hélio Puglielli – Essa mudança ocorreu paralelamente àquela profissionalização que eu me referi. O jornalista se concentrava só nos assuntos locais. E isso tira um pouco o aspecto da visão mais panorâmica do jornalista, que surge quando ele é estimulado pelo trato com assuntos do noticiário nacional e internacional. Então, ficamos numa contingência, como dizem os sociólogos, meio paroquiana, porque ficava limitada ao nosso âmbito local, não colocando a mão na massa em assuntos internacionais e nacionais, pois as agências já mandam o material praticamente pronto, através das redes de radiojornalismo e de telejornalismo.
José Wille – Na década de 60, o senhor participou também do que, na época, tinha um grande espaço nos cinemas: os jornais da tela, os cinejornais a que, antes do início dos filmes, as pessoas assistiam. Era a produtora Guaíra, que fazia filmagens dos grandes acontecimentos.
Hélio Puglielli – Nos cinejornais da época, principalmente os assuntos relacionados a Curitiba mesmo, ao prefeito Ivo Arzua e às suas obras, eram muito focalizados pelo cinejornalismo e, naturalmente, a produtora cinematográfica era estipendiada por esses clientes, digamos assim. Mas, independentemente desse oficialismo, existiam outros assuntos que eram focalizados. Então, os cinejornais tinham mais ou menos a sua razão de ser. Com o avanço do telejornalismo, isso se tornou obsoleto. Mas eu cheguei a fazer textos, mais de 200 roteiros de cinejornais nessa empresa paranaense, que hoje se dedica à produção de vídeos. Na época fazíamos, às vezes, até dois ou três cinejornais por semana.
José Wille – Esse interesse governamental por tudo aquilo que fosse comunicação – é antigo aqui. No governo Manoel Ribas já havia uma espécie de DIP – Departamento de Divulgação – aqui no Paraná, como havia no Brasil, com Getúlio Vargas.
Hélio Puglielli – Exato. Como citei, o caso do jornal “19 de Dezembro”, que já surgiu sob a égide do governo, funcionava também como um Diário Oficial para o Governo da Província na época, e também o Jornal “A República”, que durante toda a chamada República Velha foi a capitânia da imprensa paranaense. Quando esse jornal é destruído por populares e nunca mais reabre, instaura-se um novo período da nossa imprensa, o período getulista. Durante sete anos, havia ainda certa liberdade de imprensa, de 1930 a 1937. Mas, em 1937, quando se instaura o Estado Novo, nós vivemos o problema da censura, das limitações. E assim como Getúlio Vargas criou, dizem, um Ministério da Informação inspirado na Alemanha Nazista, colocando um escritor intelectual chamado Lourival Fontes para dirigir o que era o DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, no Paraná também foi criado o Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda, dirigido também por um político, Gaspar Veloso, com funções mais ou menos semelhantes e que controlava a imprensa paranaense.
José Wille – Muitos profissionais da época dizem que a aproximação mesmo da informação oficial com os jornais se consolidou no governo de Ney Braga.
Hélio Puglielli – Exatamente. Esse Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda depois se transformou em Câmara de Expansão Econômica e Propaganda do Estado, e depois em Departamento de Turismo e Divulgação. O governo Ney Braga criou um assessor ligado diretamente a ele, o jornalista Antonio Brunetti, que tinha sido Secretário da Edição Local do jornal “Última Hora”. Criou-se uma situação na qual o governo do Estado, através da concessão de recursos para propaganda, começou a ter uma importância muito grande no aspecto da sobrevivência empresarial dos jornais. De lá para cá, continuou essa mesma relação entre governo e imprensa, com o governo concedendo muitos recursos aos jornais a título de verbas e propagandas. Neste sentido, acredito que o desenvolvimento da imprensa foi prejudicado. Mas eu não culparia os governos e sim os empresários jornalísticos que se acomodaram, se contentaram com a facilidade de acesso a verbas oficiais e deixaram de se preocupar com sua própria produtividade empresarial, com a expansão da sua receita, através de diversificação de outros tipos de receitas e, principalmente, geraram o grande malefício, que foi deixarem de lutar pela conquista do leitor.
José Wille – O senhor teve oportunidade de acompanhar isto de perto, porque também trabalhou para o Estado, em assessorias como a da Secretaria de Obras Públicas, da Copel e de outros órgãos. Como era essa transmissão de informações do governo aos jornais?
Hélio Puglielli – Fui assessor do – hoje general já reformado e na época tenente-coronel – Alípio Aires de Carvalho, que foi considerado um dos cérebros do Planejamento do Paraná. Tanto é assim que tinha sido coordenador de um órgão no governo Moisés Lupion e, mesmo assim, o Ney Braga, no seu primeiro mandato, o chamou para assumir a Secretaria de Viação e Obras Públicas, hoje extinta. Gostaria de assinalar aqui o problema das verbas oficiais, porque, quando é verba para a imprensa, entra no caixa da empresa como recurso para propaganda, venda de espaço. Não há nenhuma ilegalidade ou desonestidade nisso, pois o governo, como qualquer outra empresa, compra o espaço nos jornais para inserir seus anúncios ou suas matérias publicitárias. O aspecto deplorável é quando o jornalista pessoalmente recebe verbas oficiais. Eu era muito ingênuo e fiquei arrepiado quando, sendo assessor dessa Secretaria de Estado, alguns colegas meus que conviviam nas redações, sem o menor pejo, solicitaram vantagens de ordem financeira para aproveitar aqueles textos que eu preparava e distribuía. E deixo registrado, para a história, que eu nunca dei um centavo, inclusive perdendo até amizades, assim como nunca recebi um centavo fora do meu salário jornalístico e fora do meu salário nos vencimentos dessas assessorias – o dito jabaculê da imprensa, coisa cujo sabor nunca provei, pois não é do meu paladar.
José Wille – Em 1967, o senhor começou a dar aulas na Universidade Federal do Paraná, acompanhando diversas gerações de jornalistas. O estudante muda muito, a cada geração?
Hélio Puglielli – Eu comecei a lecionar, na verdade, na Universidade Católica, que nem era PUC na época. Exatamente há 30 anos, assumi minha primeira turma. Na Universidade Federal, na qual me aposentei no ano passado, eu iniciei em 1971. Então, praticamente a grande maioria dos profissionais que está aí militando na nossa imprensa, com brilhantismo, é constituída por ex-alunos, que me dão muita satisfação, porque vejo meu reflexo neles. Mas observei, ano após ano, flutuações, oscilações. Nós tivemos, na década de 60, turmas muito medíocres, com exceção de dois ou três alunos em cada uma, graças a Deus, porque esses alunos é que estimulavam o professor. Bons, excelentes alunos! Em compensação, havia 20, 30 que realmente eram cabulosos. Nesta época, o linguajar do estudante estava muito pobre. A gente dava aula – no final da década de 60, início da década de 70 – e, ao empregar um termo menos utilizado, percebia que os alunos não tinham captado o significado da palavra. A juventude usava muita gíria, aquele negócio de Roberto Carlos – “É uma brasa, mora”… Felizmente, nas décadas de 80 e 90, isso eu não senti mais, não sei se em função do vestibular, pois a luta pela vaga fez com que houvesse uma seleção maior dos estudantes.
José Wille – Foram momentos históricos diferentes: na década de 60, muita rebeldia; na década de 70, muita repressão… Estes estudantes também eram diferentes em função do tempo no qual viviam?
Hélio Puglielli – Exatamente! Nós tivemos um período em que os alunos eram muito politizados, muitas vezes num bom sentido; outras vezes, no mau sentido, porque eu acho o nacionalismo uma coisa bastante digna, mas não nacionalismo absurdo. Como, por exemplo, alguns alunos que reclamavam quando indicava obras de autores estrangeiros, porque não havia obras de autores nacionais na época. Hoje, nós temos uma bibliografia muito grande a respeito de comunicação social, mas lá na década de 60, por exemplo, havia só autores estrangeiros, e esses alunos reclamavam com um nacionalismo assim meio curioso.
José Wille – O senhor foi diretor de Setor de Ciências Humanas na Universidade Federal do Paraná, justamente numa época que os estudantes de esquerda acabavam vendo no professor uma espécie de representante do governo. Como o senhor convivia com isso?
Hélio Puglielli – Isso era muito intenso, porque eu exerci esse cargo de direção durante quase três anos, como diretor de Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal, no período de democratização, no final do governo Figueiredo. O Brasil estava se preparando, a anistia estava em marcha, tudo aquilo. E, realmente, era intenso este preconceito político, com o qual as pessoas viam alguém que ocupasse um cargo de direção como uma espécie de representante do sistema. Na verdade, as minhas ideias são completamente diferentes, mas existiam alunos que me encaravam como se eu fosse um representante do sistema e, pior ainda, colegas meus, professores, com quem eu convivia e que formavam uma falsa ideia a meu respeito, por uma associação curiosa, talvez fomentada pela minha antecessora, que havia colocado no gabinete do diretor os retratos do Figueiredo com a faixa presidencial e do governador do estado, que era Ney Braga em seu segundo mandato. Ao assumir a sala, não vi razão nenhuma para tirar os retratos que já estavam lá, da mesma forma que não vi razão para retirar o crucifixo que ela havia deixado na parede. Eu não tinha nada a ver com as ilustres personalidades e também não tinha nada contra elas.
José Wille – O senhor tem uma obra com o título “Para Compreender o Paraná, em que o senhor fala sobre a formação do sotaque curitibano. Qual é a origem desse sotaque?
Hélio Puglielli – Bom, a origem do sotaque, como de outros hábitos que caracterizam o nosso tipo curitibano, decorre, exatamente, da síntese que se fez aqui em Curitiba entre várias etnias. Existem várias explicações para nosso sotaque, mas eu endosso integralmente aquela dada por José Ernesto Ericssen Pereira – colega nosso de imprensa jornalística, no livro chamado “História de Caminhos”: que essa nossa maneira de falar decorre de uma necessidade didática. Quando os emigrantes chegaram aqui, procuraram aprender no dia a dia a língua da nossa pátria, e os que estavam aqui, em seu contato, em seu diálogo com esses emigrantes, falavam as palavras bem silabadas, com todas as sílabas, para que os ouvidos que não estavam familiarizados com as nossas vogais realmente registrassem os sons. E esses imigrantes, por sua vez, ao falar, também adotaram esta linguagem. Nós não falamos muito depressa, como alguns brasileiros de outros estados; a nossa fala é mais ritmada. Além disso, antes mesmos dos estrangeiros chegarem, os paranaenses eram tropeiros no século XVIII; depois, houve um segundo surto de tropeirismo no século XIX. Havia também muito contato com castelhanos, porque os curitibanos iam buscar o gado lá no Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai e Argentina. Então, este contato com os países platinos também modelou, um pouco, o nosso linguajar. Finalmente, a síntese com o imigrante fez com que marcássemos bem, silabássemos bem e vocalizássemos bem – falando com todas as vogais, ao contrário da consonantalização que caracteriza outros falares.
José Wille – E a comentada timidez do curitibano. Qual é a personalidade do curitibano tradicional?
Hélio Puglielli – Essa timidez é explicada, não por mim, mas pelo historiador David Carneiro, que escreveu o livro “História Psicológica do Paraná”, em que supõe que o clima psicológico de retraimento advém, provavelmente, da época em que a maior parte dos imigrantes aderiu à Revolução Federalista. Aderiram aos Maragatos, inclusive formaram batalhões para lutar ao lado dos revolucionários – tinha um batalhão italiano, um batalhão polonês… -, mas quem venceu foram os Pica-Paus. A Revolução Federalista malogrou e esses imigrantes foram muito perseguidos. Houve uma espécie de retração política, não quiseram mais dar palpites na vida política do estado, não tomaram partido em função daquela desagradável experiência. Também as oligarquias – os coronéis – dominaram o Paraná, na chamada República Velha, inclusive impondo o voto às pessoas, limitando a sua independência política, apesar da reação dos mais intelectualizados.
José Wille – E a autofagia paranaense?
Hélio Puglielli – A autofagia paranaense está presente até os dias de hoje. Podemos vê-la na política cultural desenvolvida por entidades oficiais: o vezo, a meu ver condenável, de privilegiar artistas de fora. Ainda é de se recordar aquele caso, quando fui superintendente do Teatro Guaíra, de 1970 a 1973, para ilustrar esta autofagia – um caso em que o governo do estado traz um ator carioca, ator global, para dirigir o Teatro Guaíra, como se aqui não tivesse ninguém com competência suficiente para dirigi-lo. Toda a classe teatral, na época, insurgiu-se, batalhou, mas não adiantou nada. Então, essa autofagia significa desprestigiar a “prata da casa”, é o vezo que grande parte dos curitibanos tem de não dar valor àqueles que são daqui mesmo, mas quem é de fora pode ser canastrão, medíocre… Existe até uma piada para ilustrar esta autofagia paranaense: alguém foi visitar o inferno e viu uma série de panelões, todos com vários diabos tomando conta e as pessoas querendo sair dos panelões, que estavam fervendo. Mas os diabos as faziam voltar com golpes de garfo. E tinha um panelão em que estava escrito Paraná, de que nenhum diabo tomava conta, porque aquele que queria sair, os que estavam dentro puxavam pela perna – uma caricatura da nossa autofagia.
José Wille – O curitibano tradicional parece estar desaparecendo – aquele tradicional curitibano, que existia no linguajar, no sotaque, no comportamento – com a chegada de tanta gente que veio para Curitiba?
Hélio Puglielli – Está em minoria na sua própria cidade e, inclusive, as gerações mais novas estão muito influenciadas pela prosódia que ouvem na televisão. Até por esnobismo e por falta de maturidade, assumem essa forma de falar, que não é característica de nossa cidade nem de nosso estado.
José Wille – Como o senhor analisa a literatura e a cultura paranaenses?
Hélio Puglielli – Nós temos grandes nomes, como Wilson Martins, que, apesar de nascido em São Paulo, estudou, formou-se e pode ser considerado paranaense; temos o Dalton Trevisan; temos o Domingos Pellegrini Júnior, no Norte do estado; temos o grande poeta Sérgio Rubens Sossela; o João Manoel Simões – nomes é que não faltam… Agora, o que não existe é um conjunto, uma produção que seja valorizada, que seja prestigiada, e eu vejo isso como consequência dessa autofagia, porque o curitibano prefere comprar um best seller porque está na lista de best sellers e não presta a devida importância ao livro do escritor local.
José Wille – O senhor esteve, de 1970 a 1973, na superintendência do Teatro Guaíra, cuidando da cultura, na primeira vez em que Jaime Lerner esteve na Prefeitura. Ali surgiu, através da Fundação Cultural, um trabalho pela identidade curitibana – músicas curitibanas e peças de teatro que valorizavam o modo de ser curitibano.
Hélio Puglielli – Exatamente! Eu gostaria até de fazer jus, honrando nosso colega, o falecido Aramis Milarch – porque atribuo a ele este impulso para a valorização da curitibanidade – que foi o primeiro presidente da Fundação Cultural de Curitiba. E essa entidade, sem dúvida nenhuma, é que tem mantido esse processo de valorização das coisas de Curitiba, dentro da filosofia urbanística do atual governador do estado – com falhas na sua política cultural, mas realmente temos que reconhecer que esta identidade curitibana foi bastante fortalecida, através dessas manifestações culturais todas, polarizadas na valorização de Curitiba.
José Wille – A fase mais difícil como superintendente do Teatro Guaíra foi justamente a sua, durante os anos de 1970 a 1973 – que foi o auge da repressão política.
Hélio Puglielli – Falamos recentemente em inferno e, nesta fase, me vi dentro de um panelão fervente, porque era assediado por todos os lados. Na minha administração, o Guaíra recebeu cinco por cento das verbas que eram consignadas em orçamento. E, com essas verbas, nós fizemos um feito heroico, que não foi reconhecido por ninguém, infelizmente – de manter o teatro funcionando, apesar desta carência absoluta de recursos. Em compensação, fiz com que funcionários ou artistas que não compreendiam a falta de recursos e pensavam que era falta de vontade ou incompetência do diretor aprofundassem, inclusive, inimizades. Foi muito difícil também a convivência com certos atores e atrizes, contaminados pela neurose do estrelismo, que muitas vezes nos incomodavam com reclamações completamente improcedentes, fruto apenas da sua vaidade exacerbada. Entretanto, eu gostaria, a título de curiosidade, deixar registrado que Dercy Gonçalves – que não tinha “papas na língua” – foi uma artista que não incomodou, não fez reclamações absurdas, não pleiteou privilégios; com a administração do teatro, foi uma perfeita dama, compreensiva, manifestando uma forma de conduta que me deixou surpreso.
José Wille – Os censores estavam sempre presentes no teatro, nesse período do governo do general Garrastazu Médici, entre 1970 e 1973?
Hélio Puglielli – Em todos os ensaios gerais, no último ensaio antes da peça realmente ser posta em cartaz, lá estava o censor, muitas vezes criando alguns problemas, às vezes atrasando até o “debut” da peça, mas não houve nenhum acontecimento mais grave durante os anos em que eu dirigi o teatro, apesar de ser um período de grande repressão em termos políticos.
José Wille – O senhor tem 40 anos dedicados à imprensa do Paraná. Como analisa a imprensa nesse período? Tem melhorado?
Hélio Puglielli – A imprensa tem melhorado e tem piorado em alguns aspectos. Essa profissionalização, por um lado, tem aspectos positivos, e, por outro, não tem, porque há, por exemplo, uma carência de conhecimento entre os jornalistas atuais a respeito das instituições jurídicas, do funcionamento do sistema jurídico, administrativo. Hoje em dia, ouvimos e vemos na televisão muitas gafes de profissionais que não sabem interpretar bem uma sentença judicial, porque não têm conhecimento da matéria. Lecionei durante 30 anos no curso de Comunicação Social e uma das principais falhas no currículo é que não há uma disciplina que prepare o futuro jornalista com uma visão de como funcionam as instituições jurídicas, os sistemas administrativos, a organização do país. Até existe uma cadeira de ética e legislação de imprensa, mas é sobre a Lei de Imprensa. Então, muitas vezes, surgem incompreensões, porque realmente não sabem como enfocar o assunto, por falta desses conhecimentos que seriam necessários.
José Wille – Há falhas também na cobertura da imprensa sobre o que acontece no Paraná?
Hélio Puglielli – A imprensa paranaense, os jornais todos têm seus méritos, mas há um pecado que atinge praticamente todos: nenhum deles consegue realmente refletir todos os aspectos da vida paranaense. Há esforços nesse sentido que merecem reconhecimento, mas eu creio que nenhum dos nossos jornais ainda chegou a estabelecer uma visão integral da nossa vida. Muitas vezes, é limitado em alguns aspectos, que são aqueles pelo qual o próprio jornalista se interessa mais ou em função da própria linha editorial, que pode limitar o trabalho jornalístico. Mas, de uma forma geral, eu acho que a imprensa paranaense ainda não encontrou o próprio Paraná de uma maneira integral.