O Noroeste do Paraná dos anos 1950 descrito por Alencar Furtado
Militante da Esquerda Democrática, uma dissidência udenista que originaria o Partido Socialista Brasileiro, José Alencar Furtado, após se transferir do Ceará, onde nasceu, para o Paraná, fez carreira política no estado, ao mesmo tempo que exercia a advocacia.
Eleito deputado federal em 1970 e 1974, chegou ao posto de líder de bancada do MDB. Mas teve o mandato cassado em 30 de junho de 1977, quando o presidente Ernesto Geisel lançou mão do Ato Institucional Número Cinco.
Foi a segunda vez que o AI-5 foi utilizado para cassar o mandato de um líder da oposição. A punição anterior havia atingido o deputado Mário Covas, de São Paulo. A vida de Alencar Furtado no estado foi em Paranavaí.
Entrevista em setembro de 1998
José Wille – O senhor chegou a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, em 1952, ainda época da abertura da região…
Alencar Furtado – Exatamente. No dia 9 de janeiro de 1952, chegávamos a Paranavaí, uma cidadezinha que só tinha bancos de areia nas ruas, não tinha energia elétrica, era um distrito. Então, comecei, dois ou três dias depois, a advogar. Ali se iniciava o desenvolvimento do Noroeste, com as grandes derrubadas de matas, com o início de uma reforma rural, proporcionada pelo governo de Moisés Lupion. Fazendo-lhe justiça – pois ele foi um homem muito combatido ao longo de seu governo e fora dele – nessa época, ele iniciou uma reforma rural no Noroeste do Paraná, que foi fecunda para o estado e enriquecedora para o Paraná. Ele distribuía lotes de terra e o posseiro que ocupava a terra ainda recebia dele foice e machado. Havia uma inspetoria de terra que fiscalizava a distribuição, acompanhando-a, por causa do sentido ecológico que emprestava, porque era proibido derrubar 20% da mata na terra cedida ao posseiro. Era um início de civilização, muito duro, sem nenhum saneamento, muita doença, muita malária, muita tristeza, porque o povo vivia numa orfandade absoluta do governo.
José Wille – A estrada era muito precária e não havia luz na cidade?
Alencar Furtado – Precaríssima! Mas, aos poucos, quando a terra, pela sua fortidão, foi reconhecida como própria para a cafeicultura, os grandes capitalistas de São Paulo, de Curitiba e de Porto Alegre passaram a visitar a região. Foi aí que se criou, no Paraná, a época do Grilo de Terras – era a ocupação por violência, turbando a posse ou esbulhando o posseiro ou matando-o, o que acontecia com frequência. Criaram a indústria da grilagem de terra e uma outra camada social, chamada jagunços, que era altamente prestigiada. O grileiro, que ficava nas capitais de seus respectivos estados, contratava esses matadores, essa mão-de-obra alugada para matar e para esbulhar. E eram prestigiados também pela polícia! Mas foi uma época em que a cafeicultura se desenvolveu e havia pleno emprego. O fluxo migratório do Nordeste e do Sul do país enriquecia demograficamente a região e a mão-de-obra que chegasse era absorvida. A cafeicultura requeria essa mão-de-obra gigantesca e colocava o Paraná, privilegiadamente, como o primeiro estado produtor de café do Brasil. Então, a região de Paranavaí deu para o Paraná uma civilização nova.
José Wille – Esses grileiros não eram apenas pessoas moradoras da cidade de Paranavaí. Eram proprietários, pessoas de fora, com dinheiro, que queriam retirar os posseiros da terra e que usavam os jagunços?
Alencar Furtado – Principalmente, foram os de fora que alugavam o revólver, o braço armado do jagunço, para se locupletar das terras dos posseiros, que sofreram demais. Aquele Noroeste foi regado com muito sangue e muito suor. O sacrifício foi grande demais, até que o governo acordasse para a região, percebendo que ali estava um capital eleitoral enorme. Só quando o Noroeste valeu eleitoralmente é que o governo passou a atendê-lo, passou a ajudá-lo. Mas o povo esteve sempre à frente do governo naquela região.
José Wille – Pela presença do jagunço é que ficou essa imagem de banditismo que tinha a região de Paranavaí?
Alencar Furtado – Na época, havia essa imagem, porque o índice de criminalidade era grande. Só caiu esse índice – quase a zero – quando chegou a comarca e, principalmente, o juiz Sinval Reis, que foi um marco para a nossa época. Com a sua chegada, a jagunçada e os grileiros foram embora dali. O Oeste do Brasil foi a nova área cobiçada por eles: Mato Grosso, Rondônia, Acre etc.
José Wille – O senhor dedicou um livro só para tratar desse assunto?
Alencar Furtado – Exatamente. Escrevi “A Posseira e o Doutor” para começar a explorar um filão enorme, porque fui testemunha deste início de civilização. Participei de muitos lances, vivi muitos episódios, advoguei intensamente. Um dos personagens do romance, a dona Setembrina Maria da Conceição, eu a defendi no júri popular, ressaltando a posição da mulher posseira. Porque, hoje, ressalta-se a mulher do cinema, a mulher da novela, a mulher rica, a mulher das grandes revistas, mas eu não vi, ainda, a exaltação da mulher posseira. Então, fiz questão de prestar essa homenagem à mulher que era boa de enxada, que era boa de trabalho. Mas, digo ainda, que não era boa de cama, tanto que o Brasil, que era seu marido, a abandonou por outra. E, mesmo assim, ela ficou, defendeu sua posse, resistiu à tentativa de esbulho possessório, matou quatro jagunços e foi absolvida em júri popular.