Memória

“Maria Polenta”: Uma lição de vida


Ela ‘consertava até ossos’, era a preferida dos jogadores de futebol e virou uma lenda curitibana. ” (GAZETA DO POVO – Reportagem de José Carlos Fernandes.
*Texto da Gazeta do Povo em 18 de março de 2007.

 

Clélia Mari Tortato Contin, 58 anos, era ainda uma guria de saia plissada quando pegou de jeito sua turma de liceu. Ao fazer uma redação apontando quem era seu ídolo, não respondeu Roberto Carlos ou Wanderley Cardoso, a exemplo das garotas papo-firme. Apontou a caneta e disparou orgulhosa o nome de Maria Polenta, sua ‘nonna’. Até hoje tem sido assim. Clélia faz parte de uma espécie de confraria em que se abrigam os admiradores dessa que é uma das figuras mais curiosas do panteão curitibano – Maria Trevisan Tortato, a italiana da Água Verde que por pelo menos meio século tratou fraturas dos que batiam palma no portão de sua casa – no alto da Rua Ângelo Sampaio – principalmente jogadores de futebol, fossem eles do Atlético, do Britânia, Savóia ou do Palestra Itália.
A existência dessa legião é um dos mistérios de Curitiba. Muitos personagens marcam a vida da capital. Só de Marias, o pesquisador Valério Hoerner Júnior, em seu livro Ruas e Histórias de Curitiba, aponta cinco fora a Polenta: Maria Balão, Maria Sete, Maria Pelanca, Maria Desenhista, Maria do Cavaquinho. Mas poucas figuras cativam tanto quanto Maria Polenta, cuja história ainda corre de boca em boca, apesar de ter morrido em 22 de abril de 1959 – há 48 anos – merecendo um dos maiores funerais que a cidade já viu. ‘A cidade foi pequena. Quando o corpo chegou no Cemitério da Água Verde, ainda tinha gente saindo em fila da casa dela’, lembra a sobrinha Geni Tissot Massocin, 83 anos, sobre o cortejo de aproximados cinco quilômetros.
Maria era popular entre os “sem-médico”, mas também cortejada pela nata. Tinha como vizinhos Guido Viaro, Erasmo Piloto e João Turin. Poty Lazzarotto – que não morava perto – chegou a pintar-lhe um retrato, de memória, por sugestão do médico Luiz Carlos Sobania. Não por menos, um ano depois de sua morte, em 1960, o celebrado escultor Erbo Stenzel – o mesmo da Praça 19 de Dezembro –, fundiu o busto da “curadora de ossos”, hoje instalado numa pracinha que leva o nome dela, na Avenida República
Argentina com a Getúlio Vargas. Não lhe faltaram homenagens. Na década de 70, Maria virou nome de rua no Novo Mundo – via que, aliás, faz cruzamento com a Maria Bueno – a santa não-oficial da capital; nos anos 80, seu nome batizou a unidade de saúde da Rua Carneiro Lobo – no Batel.
Popularidade
Mas as obras dedicadas a Maria Polenta não justificam sua popularidade. Parte do fascínio que a personagem exerce vem justamente do nome engraçado, desses que gera gracejos e hipóteses absurdas. “Tem gente que pensa que ela era polenteira”, brinca a neta Alba Gabardo, 76 anos, a que conviveu mais tempo com a nonna. O apelido veio de contrabando. Antônio, irmão mais novo de Maria, era funcionário da Todeschini e teria substituído um cozinheiro da fábrica. Como mandou muito bem na polenta, passou a ser chamado de Antônio Polenta. No Capão da Amora – hoje bairro Seminário – onde parte da família Trevisan Tortato morava, o clã ficou conhecido como os Polenta, o que se estendeu à aguaverdeana Maria.
Os dez filhos da italiana detestavam ver a mãe ser chamada pelo apelido. A implicância passou e hoje faz parte do anedotário da família. Ainda riem ao lembrar que Nilo, um dos garotos, foi abordado por um grupo que pedia informações sobre a casa de Maria Polenta. Irritado, não só disse que nunca tinha ouvido falar como desceu num ponto depois na Avenida Iguaçu, para não deixar pistas. Sem sucesso. Ao chegar em casa, deu de cara com os visitantes. Não faltou quem lhes informasse onde ficava o endereço mais movimentado do antigo Borghetto – como a Água Verde era então chamada.
As descendentes de Maria não arriscam chutar quantas pessoas ela ajudou, mas calculam que pelo menos 15 pacientes/dia passavam o portão da velha casa de madeira dos Tortato. Multiplicados por 50 anos, tempo estimado em que atuou – a conta ultrapassaria 2 milhões de consultas. O ritual era quase sempre o mesmo. Ela puxava conversa, perguntava o nome e ia passando o polegar esquerdo na área ferida. De repente – dava um puxão. “A gente só ouvia o grito”, lembra Alba. Em seguida, passava água vegetal canforada, fazia uma tala de cavaco com algodão e gaze – material comprado no laboratório Antisardina, logo em frente. Depois, revestia com celofane. Com sorte, servia uma pratada de sopa de carne, ou o taiadelli – uma receita típica de macarrão. Antes de se despedir, perguntava se o paciente tinha dinheiro para o bonde. Se não, sacava do que recebia de doações espontâneas.
Como a fama de generosa de Maria Polenta tinha se espalhado por Araucária, São José dos Pinhais e na distante Santa Felicidade, a mulher deu de financiar o retorno do paciente, o que poderia acontecer mais de uma vez. Tinha quem voltasse dessa para tirar a tala e aprender a fazer o que hoje se chama de fisioterapia. Podia ser uma série de exercícios de peso, pondo um tijolo em cada mão, ou massagem à base de talco. Depois, alta.
Maria é descrita como uma senhora de hábitos monásticos. Era pequena, usava vestidos até os pés – costurados por ela –, de pouca fala e temperamento cordial. “Só mudava na hora de dar conselho: ela era curta e grossa”, diz a neta Clélia. Numa enquete da reportagem pelos espaços em que foi homenageada é comum encontrar quem não saiba exatamente o que fazia – como Marlene Moreira, moradora da esquina da Rua Maria Trevisan Tortato com a Maria Bueno. “A Maria Polenta botou muita gente no mundo”, garante, sobre a parteira que Maria nunca foi. Mas ninguém erra no essencial. “Essa mulher fazia o bem para muita gente”, diz a portuguesa Carla Rocha, há oito meses no Brasil, vendedora de garapa de cana na Praça Maria Polenta. Ela inclusive garante que a homenageada morava ali perto, na casa onde hoje funciona o Centro de Valorização da Vida (CVV) – o que não é verdade. Mas bem que podia.
Dona de uma banca de revistas na mesma pracinha, Ana Paula Pereira, 35 anos, faz parte dos que não economizam na hora de explicar por que essa Maria é diferente. “Muita gente vem me perguntar quem era ela. Como minha mãe a conheceu, explicou que a Maria foi uma mulher muito boa”, garante. O mesmo vale para o empresário do setor de transportes Fernando Cascardo, há 17 anos atuando na área em que o busto feito por Stenzel desperta curiosidade. Ele lembra que até hoje, a velha-guarda do Clube Curitibano, logo ali, costuma dar um pulinho na Praça Maria Polenta, gabando-se de ter um dia curado uma luxação com a personalidade que dá nome ao logradouro.
Os familiares não pestanejam em apontar a gentileza com que a antepassada recebia as pessoas como a fonte de sua longevidade no imaginário curitibano. Sua sobrinha Geni Tissot, 83 anos, passou um tempo de convalescença na casa da Ângelo e lembra do impacto de ver tanta gente recorrer aos préstimos da tia. A neta Alba cresceu assistindo a esses rituais. Tanto que detesta ver a nonna ser classificada como uma benzedeira. As “costuras” para as quais era solicitada eram tratadas com leituras da Bíblia. “Acho que o que acontecia com minha vó só a parapsicologia explica. Ela tinha um olho no polegar, enxergava o que ia por dentro e arrumava. Nunca soube de ninguém que tenha reclamado”, explica Alba. Nem os médicos. Um deles, Wagner do Nascimento, convenceu Ida, uma das filhas de Maria, a se tratar argumentando que a Polenta era citada até em aulas na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
A mulher do Bépi
Maria Trevisan chegou no Brasil em 1892, aos 12 anos de idade, e não se sabe em que colônia viveu com os pais e os sete irmãos até se casar, aos 18, com José Tortato, o Bépi Érico. Ele foi tão famoso quanto a mulher, mas não pelo dom da cura. Era um daqueles pedreiros italianos de elite, chamados para construir igrejas, a exemplo do Imaculado Coração de Maria, no Rebouças. Também erguia túmulos no cemitério, a ponto de ser confundido com o coveiro – até porque adorava pegar carona com carrocinha fúnebre. O resto fica por conta de ter sido o bebedor “mais conhecido da região”, como brinca Celso Gabardo, 76 anos, marido de Alba, também ele, um dia, cliente de Maria. “Tive uma dor de dente terrível e meu pai me levou lá. Até nisso ela dava jeito”, diverte-se, sobre a popular que chegou a tratar da pata de um cavalo do Atuba. O bicho, conta-se, não foi sacrificado.
Uma das dúvidas que ronda a Polenta é sobre o exato momento em que tudo começou. É consenso que um filho se machucou. Ao passar o polegar, ela botou a fratura no lugar. Maria também teria sonhado com um cadáver – diante do qual recebeu todas as informações sobre o funcionamento do corpo humano. Para Alba, a nonna entendeu o acontecido como uma manifestação divina, à qual teria de retribuir fazendo caridade. A informação, claro, espalhou feito rastilho de pólvora e só não atraiu a desconfiança dos padres porque Maria era católica de missa e piedade. Dizem que o vigário Francisco Stajinski chegou a bater no portão para saber se ela realmente benzia. Não precisou passar um sabão. Ao ver que lia a Bíblia não tocou mais no assunto.
Epílogo
Nas cinco décadas em que Maria Polenta atuou, as filas de carroças no trecho da Ângelo Sampaio, entre a Sete de Setembro e a Silva Jardim, onde ela morava, foram substituídas por carros. A saúde da italiana ficou arisca. Tinha erisipela e uma artrose infernal. Como se negou a usar a cadeira de rodas que os filhos lhe compraram, apoiava-se numa cadeira de cozinha, com a qual andava pela casa – como mostra a reportagem “Um dia com Maria Polenta”, publicada no jornal O Estado do Paraná em 19 de fevereiro de 1952. Morreu aos 79 anos de idade, em 1959. Seu túmulo no Cemitério de Água Verde fica na quadra 177. Tem cerca de 30 agradecimentos por graças recebidas. Reza a lenda, não passa dia sem que ali se coloque um ramo de flor. “Grato Maria Polenta.”

 

 

 

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